A ideia surgiu de uma entrevista recente a um banqueiro, mas pode aplicar-se a todos aqueles que porventura vivem num mundo da alta finança (e noutros mundos), onde a vida tem pouca adesão à realidade concreta das pessoas.
Isto sabemos: há pessoas aparentemente distraídas que estão concentradas noutras coisas. Algumas estão muito ocupadas a pensar em coisas aparentemente muito importantes. Imagino que seja uma dessas pessoas. Só isso justifica que o senhor tenha dito, a propósito da austeridade a que o povo português está sujeito, o seguinte: "se aquelas pessoas que nós vemos ali na rua [os sem-abrigo], naquela situação, a sofrer tanto, aguentam, porque é que nós não aguentamos? Parece-me uma coisa absolutamente evidente".
Isto sabemos: os sem-abrigo não aguentam tudo. Um dia deixámos de aguentar e desistimos de tudo. Agora sobrevivemos. Tudo começa de forma simples, às vezes demasiado simples, outras vezes nem por isso. Há histórias que talvez não conheça. Alguns de nós ficaram demasiado tempo desempregados, outros têm problemas de saúde mental e quando a família nos deixou de conseguir ajudar, acabámos na rua porque são escassas as respostas de apoio. Sabe, o Estado Providência não chega a toda a gente. Em certas áreas ainda tem muito caminho a percorrer.
Isto sabemos: o senhor tem gosto pela austeridade, mas talvez mude de opinião se ela se aplicar a si. A realidade da economia é que manda, diz o senhor, mas quem é que manda nessa tal economia? Ela tem de crescer, isso sabemos. Como? Alguns sem-abrigo chegaram aqui hoje a dizer que tentaram, mas não os deixaram trabalhar para a economia crescer.
Isto sabemos: não se nasce sem-abrigo, tornamo-nos sem abrigo. A fórmula mais fácil é perante um problema não termos quem nos ajude. Se não temos uma rede de solidariedade que nos apoie em caso de necessidade, que tanto pode ser a família e os amigos, como profissionais dos serviços públicos, estamos tramados. A exclusão social e a pobreza são processos complexos que podem começar de forma simples. Um dia, quando o senhor tiver tempo, eu explico-lhe.
Isto sabemos: já desistimos há muito do estatuto de cidadãos, com os direitos e deveres próprios de quem vive em sociedade. Resta-nos o estatuto de Pessoa, coisa que pouco nos serve. Na verdade sentimos, pensamos, comemos e dormimos como as pessoas. Mas somos mesmo pessoas? Se somos pessoas qual é a sua perceção de sociedade?
Isto sabemos: nós, os sem-abrigo, somos invisíveis, mesmo quando alguém como o senhor nos nomeia. Há associações que nos ajudam, mas são poucos os que ajudam essas associações. Há pessoas que à noite distribuem comida na rua, mas não lhes pagam para tal. Há pessoas que voluntariamente nos ajudam por compaixão, sentimento exclusivo das pessoas que têm consciência que há mais mundo para além do seu e que todos somos pessoas.
Sabemos que o senhor e outras pessoas distraídas acham os sem-abrigo figuras incómodas na fotografia duma sociedade moderna que vive do e para o hedonismo. Estamos à espera que essa sociedade venha cá, a este lado, para compreender o que é dignidade da pessoa humana.
Esta crónica é ficção, mas representa um mundo que está à distância de um clique para alguns. Isto sabemos.
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